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Até agora, os acórdãos que li sobre divórcio sem consentimento não são favoráveis à mulher que, regra geral, toma a seu cargo os filhos e continua com o trabalho de casa que não é considerado trabalho aos olhos da sociedade que necessita de aumento demográfico, da permanência da mulher no mercado de trabalho e liberta o homem de todo e qualquer compromisso para com a família de que a sociedade necessita para não quebrar o grande círculo das contribuições sociais que incluem crianças (aos olhos das estatísticas reduzidas a números úteis) e idosos (aos olhos das estatísticas reduzidos a números inúteis, pesados). A imagem perfeita para esta situação será a do rato a correr dentro da roda. Sem parar.

 

Quando é que o trabalho da mulher em casa é considerado trabalho e deixa de se ler em todos os acórdãos relativos a mulheres que trabalham em casa que não trabalham quando, de facto, trabalham?

Se se desse o caso de ser este um assunto relativo ao trabalho do homem em casa... seria da mesma opinião. 

A tese de doutoramento da socióloga Liliane Fiori-Astier , «LES FEMMES AU FOYER Objectivation et subjectivation d’une invisibilité sociale» constitui um dos mais importantes documentos que arquivei na pasta «o estranho silencioso caso da mulher intersticial». O trabalho de Liliane tem a qualidade de trazer para a primeira linha a presença ausente da dona de casa (la femme au foyer), arredada do prestígio social apenas conferido pelo trabalho pago e ganho.  Nesta ordem das coisas da vida, e agora volto eu com as minhas leituras de acórdãos relativos a divórcio, as mulheres donas de casa tornam-se prisioneiras de uma armadilha social, presas numa teia de recados contraditórios consagrados na letra de lei que vê no trabalho remunerado a única forma prescrita de equidade e libertação. «Arbeit macht frei» é a mais certa de todas as certezas. Ironia simbólica plasmada nos inúmeros documentos que consultei e em que ao homem se reconhece o seu protagonismo social porque contribuinte (quem trabalha tem rendimentos e quem os tem existe e dá corpo à máxima inscrita nos trágicos portões dos campos da morte) e à mulher dona de casa, sem rendimentos do seu trabalho, prisioneira dos assuntos domésticos e assim conjecturada, se recomenda a entrada no mercado de trabalho como se esta não tivesse outra hipótese de existência, ou pior, como se os tais assuntos domésticos fossem os únicos a ocupar-lhe o corpo, a alma, a vida. Talvez por este motivo, a tese de Liliane Fiori-Astier abra com esta memória de Virginia Wolf: Tous les dîners sont préparés ; les assiettes et tasses lavées, les enfants envoyés à l’école et partis au quatre coins du monde. Rien ne reste de tout cela. Tout a disparu, tout est effacé. Ni la biographie ni l’Histoire n’ont un mot à dire de ces choses. Et les romans, sans le vouloir, mentent inévitablement. Toutes ces vies infiniment obscures, il reste à les enregistrer… para concluir com o brilho deleuziano da «puissance d'agir*» que nos leva à existência efectiva da dona de casa «dans un cadre éthique et politique rénové, les luttes pour la reconnaissance sociale de tous les acteurs sociaux et de celle des femmes en particulier.»

* Quand il rencontre un autre mode, il peut arriver que cet autre mode lui soit « bon », c’est-à-dire se compose avec lui, ou au contraire le décompose et lui soit « mauvais » : dans le premier cas, le mode existant passe à une perfection plus grande, dans le second cas, moins grande. On dit suivant le cas que sa puissance d’agir ou force d’exister augmente ou diminue, puisque la puissance de l’autre mode s’y ajoute, ou au contraire s’en soustrait, l’immobilise et la fixe. 

 

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