A vida em Portugal é enfadonha? De um modo geral é bocejo, tédio monumental, excepto quando surge um livro como o de Manuel Gusmão, «A Foz em Delta». Tenho pensado muito no que ando a ler e a reler neste livro que abre com Proletários de todos os países, uni-vos. Imagina-se que acabou o tempo das cerejas os proletários sucumbiram ao consumo, às férias além Algarve e os turistas desaguam em Lisboa, sobretudo aqui, turistas de classe média feliz com o sol, os preços baixos do café até ao pargo legítimo ou ilegítimo, tanto faz. Na realidade, todos estamos mais e mais proletarizados. Ainda mais. Gusmão provoca ou regista o que vê? Todo este livro é um tratado de observação de aves com a delicada, refinada forma de escrita de Gusmão. Única surpresa desde há muito. Grata novidade do meu coração.
Oiço o David Ferreira na telefonia, no rádio. É um paraíso de educação e cultura com som. Aquilo deve dar-lhe um trabalhão e meticuloso como o conheço, imagino o tempo da montagem de cada petit morceau sonoro, documentos que só o David se lembraria de puxar cá para cima: Pour la flamme que tu allumes /Au creux d'un lit pauvre ou rupin/Pour le plaisir qui s'y consume/Dans la toile ou dans le satin/Pour les enfants que tu ranimes/Au fond des dortoirs chérubins/Pour leurs pétales anonymes/Comme la rose du matin/Thank you Satan.
O 25 de Abril serviu-me, como sempre, para subir a Avenida de modo a não perder nada do que por ali desce. Concordo que Prostituição não é profissão por um sem número de argumentos. É um tema apaixonado por mim.
Que argumentos posso eu ter a favor das mulheres, sobretudo as mulheres, sempre as mulheres que se prostituem? Que a mais velha profissão do mundo foi ideia de homem, e a da nossa origem situada algures na costela de um macho? Ideia macho, macho, macho. Li numa das inúmeras páginas das duas redes sociopatas o comentário de uma mulher, a propósito da imagem acima publicada, que se tivesse apanhado esta, a do cartaz, pois que lhe diria das boas. Mais coisa, menos coisa era esta a intenção escrita. Que iria então gritar, dizer, murmurar a mulher da rede sociopata? Ninguém percebeu porque não se explicou. Eu expliquei-me e arrependi-me de imediato. Ninguém ouve ninguém porque o barulho é tanto, tamanho ruído de fundo, tanta solicitação que tudo se perde. Se calhar ainda bem.
Os dias passam entre burocracias diversas. São-me exigidos tantos documentos que me perco entre estes e explicações formais Ex.mo senhor com o cuidado antigo do índice elevado a seguir ao ponto. Exmos assim escrito é uma palavra engraçada com a qual brinco enquanto preencho o meu caderno caótico, agora oficialmente marcado com a respectiva etiqueta. Para eu encontrar a citação que necessito ou outro dado, percorro páginas e páginas. Quando a pressa exige é-me tão normal deixar pessoas à espera quanto encontrar a informação que buscava. Tudo na minha vida melhorou. As roupas andam ao monte e não me preocupo, os livros escondem livros que ocultam livros e não me preocupo, os documentos estão arrumados dentro de pastas e por temas e não me preocupo. A gata passeia-se por entre os montes de livros, revistas, recortes de jornais; elástica sobe até ao cimo das estantes e do armário antigo. Acompanha-me no trabalho de recuperação das janelas. Espera por mim. Olha-me enquanto os pombos esvoaçam. A gata gosta deste desafio. As moscas irritam-na e diverte-me a nervoseira gatona.
Espero ansiosamente pela resposta que há-de vir e não chega. Os CTT deixaram de funcionar com a pontualidade de outrora e quando dou por mim a reparar nestes detalhes escangalho-me a rir: é a idade, Nossa Senhora!
O momento político é bizarro. O Partido Socialista, seja lá o que isso for, mandou pastar Sócrates e Pinho. E atrás deste dar ao desprezo, caíram das escadas, uns em cima dos outros, os anteriormente conhecidos como socráticos. Mais uma vez a rir não consigo levar estas pessoas a sério, por mais esforço que faça para lhes respeitar as dores, a verdade é que não as sinto como tal. Não há respeito intelectual pelo vazio intelectual. Impossibilidade minha? Nem pensar. Impossibilidade dessas pessoas para quem olho com curiosidade seguida de cansaço. Cada vez mais afastada deste universo de vaudeville com portas a abrir e fechar. Entra um pela direita alta e sai o outro pela esquerda baixa. Ou o contrário. Interessa-me, claro, rio e leio, leio-os e rio ou fico
séria, pensativa a pensar que se este governo vai ao ar lá voltam os saques às pensões, o aumento
das rendas, os despejos Cristas a eito. Por mais que Costa me irrite, quero que permaneça. Tem que
lá estar pelo menos durante este ano, que dure até às próximas eleições. É fundamental que os
velhos recebam os subsídios, que parem os despejos. Pelo menos isto. O resto, a cultura, 1% para
a cultura não será nunca para agora. Será alguma vez para sempre? Devia ser. Tem de ser. País
mais pobre. País sem cinema, teatro cada vez mais encolhido, artistas do regime novo
iguais aos do antigo. Os que pagam para fazer figura em Veneza que irá ao fundo. Detestável
Veneza enturistada até não se conseguir descobrir-lhe a beleza que li nas Venezas de Paul Morand.
O Jorge Silva Melo fez a descrição perfeita de um dos meus pintores amados: o Álvaro Lapa. Ora disse
o que apanhei em imagem e aqui deixo do lado direito: falava baixinho (...)
O Lapa, para sempre o homem das manchas, montanhas negras, estranhas formas.
Eu via paisagens, a seguir um mapa, depois estradas e ruas e prédios que
depois eram vulcões e com o tempo e as sombras evoluíam para monstros e mulheres penduradas e
homens em pé ou deitados e plantinhas, ervas altas, árvores. Animais. Nunca paro de descobrir
histórias no Lapa. Encontrava-o na galeria da Maria Nobre Franco. A fumar. Sorrimos inúmeras
vezes um para o outro. E o filho era, é igual ao pai.
Se o mês de Abril pertence ao António, este é o primeiro Maio sem o Pedro. Não tem sido fácil,
ora, ora, como se pudesse ser fácil. Custa-me ser a mana sem manos. Desmanada, invento.
Vi o filme do Ruben filmado no Conservatório Nacional «Infância, Adolescência, Juventude». Gostei
muito do olhar dele sobre os alunos de dança, bailado. Não por ter sido uma delas, mas porque
o Ruben representa a geração que se segue a todos os cineastas que conheço.
O João Botelho, por falar nisto, desiludiu-me. Com é que um tipo com uma cultura de cinema se
refugia em argumentos tão pobres para explicar o seu trambolhão?
Portugal é tão pequeno que anda tudo a ver se o tempo faz o seu trabalho de limpeza sobre tudo
e estes pares de botas. De Sócrates a Botelho. Se Deana Barroqueiro fosse um escritor de sucesso,
Botelho e seus «amigos» -- e sim, permito-me estas aspas, estou longe, mas vejo-os por dentro e por fora, vísceras e cabeça -- iriam cantarolar de outra forma. Coração e estômago. Mais uma vez, a mulher na figura da autora Deana é quem leva com as dúvidas numa história viscosa de pernas para o ar. E a verdade é que uma mentira repetida muitas vezes, por Botelho, neste caso, passará a ser verdade? O tempo.
Hoje, o calor transformou o meu corpo no meu antigo corpo. O céu ameaça chuva e eu queria, quero chuva com calor e o cheiro da água no alcatrão e na terra dos canteiros do centro de saúde de Alvalade. Um belo passeio pelo empedrado imperfeito. É preciso ver onde se põe cada pé. No outro dia calcei botas com salto alto. Há mais de um ano que o não fazia. Temi pelos meus ossos, mas correu tudo bem.
A Madalena falou-me da existência do «Grey Gardens», da little Edie na sua complexa vida com a big Edie. Ainda estou impressionada e a ler sobre elas, as primas direitas de Jackie Kennedy ou Onassis. Sobre nós. Não sei bem sobre quem estou a ler, mas há um estranho poder encantatório naquele caos, nas t-shirts e casacos transformadas em lenços, na capeline da mãe sentada na cama. Nos gatos. Nas sebes selvagens. No lixo. E tudo nasce delas. Daquelas duas doidas varridas, duas grouch women.
Fim.