Cada pequena imagem, em baixo, tem segredos. Picar na imagem e descobrir. Obrigada.
As pessoas podem escolher os seus lutos. Não como quem vai às compras de livros póstumos. Longe disso, mas também por isso, o meu luto dos meus junta histórias recordadas e contadas pela mãe, por mim e pela minha amiga de infância, a João, da memória à prova de todo o esquecimento. A João tem sido, nestes últimos tempos, uma presença semelhante ao nascer criança. Reificamos ambas o nosso passado comum e enquanto ela me envia fotos dos locais espantosos por onde vai vivendo com o marido, eu sinto-me feliz. Por ela e por mim. Pelo mar que ela vê e me mostra, as ilhas, as explicações que me dá. Ter uma amiga assim, da infância, mesmo do tempo em que se nasce é uma bondade da vida. Há mais amigos, claro que há, e a todos estou mais que grata. Ser adulto é uma chatice, em especial quando alguém se nos morre e começam as histórias do eu-e-o-morto. Pior que isso, a pretensão de saber o que o morto iria gostar. É neste momento que se me entra o momento em que «as crianças brincam, um mistério escondido» no dizer de Walter Benjamin. E assim é. No meu luto, os três Rolo Duarte brincam. Um é o pai, sem dúvida, e os outros vêm da imagem azul. O António que era muito bonito e o Pedro feliz, despreocupado, sem tensões, ao colo do irmão. Eu estou de fora porque fugia de todas as fotos.
Já nessa altura queria controlara minha bela feiura. Ainda hoje sou assim. Não gosto de me ver em fotografias, excepto as de bebé e criança até aos 7, 10 anos máximo. Por isto e sem ser por isto, por nada de nada, a não ser porque é na infância que reanimo os adultos, nós todos fomos crescendo e porque leio e fico parada a pensar não deslargo a miúda das brincadeiras secretas. Assim tenho esta seringa deleuziana para reavivar os adultos parvos em que nos tornámos. Todos. Merleau-Ponty observa que as crianças encafuam nos sonhos, os seus pensares sobre os outros. É por isto que não há aqui histórias de nenhum de nós. Tudo está dentro de um buraco de areia na Praia Grande da nossa miudez. As crianças querem todas crescer, contudo, Baudelaire, esse adulto louco e agressivo, e talvez por isso mesmo, afirmava que o espaço da infância é o génio que se reencontra. Um acaso feliz onde o espírito analítico infantil que mais tarde se perde nas tarefas tantas vezes inúteis dos adultos. Cultivar o meu luto dentro das memórias reificadas e risonhas da nossa infância tem sido a minha salvação.
Neste prolongado luto, que da minha mãe não sei dizer grande coisa porque não me atrevo a essa intrusão num universo único de mulher que perdeu tanto. Mais que eu e que nunca o venha passar por aí.
Num momento do velório do Pedro, um friso de pessoas lia textos que não ouvi, diziam palavras que não ouvi, tudo aquilo era disforme, grotesco. Levantei-me e tentei explicar, mal, que o Pedro morto tinha sido feliz, descontraído e não o homem tenso, cheio de fantasmas, que os via, que se viam, naquela cabeça confusa. Perdida entre o que fora e o que era. E ao falar, dei comigo a falhar em toda a escala. Sim, o Pedro fora comunista e por esse tempo de miúdo ainda tinha esse ar alegre. Falava dos deserdados, era fluente no discurso político infantil e belo. Mas eu mal referi a mãe do Pedro e deveriam ter sido para ela todas as palavras e não seriam poucas. Ou seja, aquele friso de pessoas, uma que não parava de chorar para em seguida a ver a rir, o sofrimento dura pouco, e que insuportável me estava a ser aquele coro de carpideiras, com a excepção da Carmo para quem olhava de quando em vez, sentada, sozinha. Pois que não me diferenciei dos adultos de vidas feitas. Ali especados para ver e serem vistos. Procurem por imagens da mãe,irmã e sobrinha do Pedro e não irão encontrar. Pedi aos jornalistas que respeitassem a nossa dor e expliquei que havia circo que chegava para dar e vender. Cumpriram. O costume nestas porcarias. Pois o que eu queria ter explicado era-me impossível. Estava confusa, irritada, triste como a mais triste noite do universo esquisito que nos rouba diamantes e aparentemente nada dá em troca. Mas dá. Chama-se luto e eu escolhi a imagem em fundo azul com os meus irmãos mortos. Um tão bebé a rir, em segurança, e o outro com o olhar brilhante da pessoa brilhante em que se tornou. Um rapaz de cabelo ondulado com quem ia de mão dada furar as maiores ondas da Praia Grande. Não podia haver melhor. É este o luto que escolhi. Tudo o resto, ao pé dos meus segredos infantis, não cabe em sítio algum. É como um daqueles caixotes desarrumados que vai ficando até ao dia em que dizemos: lixo.